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Não é a liberdade um bem absoluto, imutável e universal, que todos os homens haverão de possuir igualmente. Em número e extensão, a liberdade reparte-se e varia segundo as particulares conveniências de cada agregado social. A liberdade é uma necessidade prática da vida. Mas longe de ser um direito inato do indivíduo, é antes a consequência dos seus deveres. Não é a liberdade um fim em si: é o mais seguro meio de auxiliar a ordem. Subordinada à utilidade social, a liberdade só é proveitosa na medida em que serve as condições fundamentais da sociedade.
Liberdade indefinida não é liberdade. Não basta que um texto constitucional consagre e prometa a liberdade política: é preciso que todas as instituições secundárias do Estado concorram a protegê-la e a assegurá-la.
Liberdade e autoridade são forças solidárias, complementares, inseparáveis. A verdadeira liberdade não é possível onde não exista autoridade, do mesmo modo que, inversamente, a verdadeira autoridade não será justa onde não houver liberdade. Nem a liberdade nem a autoridade constituem o alvo da vida humana: são apenas os instrumentos necessários para a melhor realização do destino do homem.
A liberdade, concebida e ordenada segundo a lógica do que Duguit chamou a «doutrina do direito individual», não foi e não é senão a impostora máscara do mais extreme despotismo. Dogmatizada a liberdade, a liberdade tornou-se hostil às obrigações e privilégios, particulares ou colectivos, que constituem as autênticas liberdades sociais. Fatal máxima a que disse que não havia liberdades contra a Liberdade!
Estado e indivíduo, autoridade e liberdade, são valores equivalentes. Mas como se o Estado fosse a única realidade, pretende-se agora identificar o indivíduo com o Estado, não querendo ver que assim se lhe aniquila a alma. Fica por esta forma esquecido que indivíduo e Estado são dois termos da mesma realidade. Em vez de suprimir ou amesquinhar qualquer deles, têm de ser conciliados e harmonizados.
Estado e indivíduo não são forças contrárias, alevantadas em constante pé de guerra. Nem o objectivo do Estado é limitar o indivíduo, absorvê-lo, dominá-lo como servo ou como máquina, nem os direitos individuais – a liberdade individual, a dignidade ética – ameaçam ou prejudicam o valor universal do Estado. Não é de consentir que o Estado se torne senhor absoluto do indivíduo; mas também não é de admitir que o Estado eticamente dependa do poder arbitrário dos indivíduos. Assim como não deverá haver autoridade ilimitada, também convirá condicionar o direito individual de liberdade. Tem limites o poder de mandar e o dever de obedecer. Ao indivíduo, como ser racional, com seu definido carácter de autonomia, precisa de ser garantida a liberdade necessária para em si e à sua volta desenvolver a própria personalidade.
Como o cristianismo ensinou, cumpre ter sempre bem presente que o homem é uma pessoa, isto é, um ser essencialmente livre e autónomo em relação ao tempo e ao espaço. A medida definitiva da vida humana não a dá nem a Cidade, nem a Classe, nem a Família: é o próprio homem, na sua qualidade de pessoa, que se torna o centro de gravidade da vida social.
Constrói-se a sociedade para o homem, não é o homem criado para a sociedade. Mas esta independência da pessoa humana em relação às diversas formações sociais, não dispensa a real submissão do indivíduo ao grupo. S. Tomás de Aquino, a mais clara voz que para a elucidação deste problema ainda foi ouvida, não temeu retomar o adágio de Aristóteles, segundo o qual cada pessoa humana singular está para a comunidade como a parte está para o todo. Nessa relação lhe fica dependente. «Quoelibet persona singularis comparatur ad totam communitatem sicut pars ad totum», ensina o Doutor Angélico (Sum. theol. II-II, 64, 2). Mas logo limita o alcance dessa proposição, dizendo: «Homo non ordinatur ad comunitatem politicam secundam se totum et secundum omnia sua» ( Sum. theol., I-II, 21, 4 ad 3).
Daí, não estando a definitiva razão de ser da comunidade em si mesma mas nas pessoas, a submissão dos indivíduos a ela, até que lhes exige os maiores sacrifícios, torna-se a justa condição do seu aperfeiçoamento pessoal. Desta sorte, não é sujeição, é colaboração. Se a alguma violência recorrer, será para defesa dos interesses da pessoa, para suprir as fraquezas ou os excessos da liberdade.
Essa poderosa união das liberdades públicas e de um poder incontestado e forte, a Monarquia o realiza. Quando o equilíbrio se quebra ou altera em proveito de um dos elementos, de que só a constante harmonia é a fiadora certa da ordem e do progresso, ter-se-ão de sofrer os perigos do absolutismo absurdo ou da demagogia violenta. Diante desse espectáculo, António Sardinha observava: “Abriu falência, no seu opressivo artificialismo, o Estado moderno. Autoridade, continuidade e uniformidade nos órgãos governativos, liberdade, autonomia e fiscalização nos órgãos administrativos e representativos, - eis a fórmula que se nos oferece para restaurarmos o equilíbrio perdido da sociedade. É assim restituí-la à sua estrutura medieval pela aliança proporcionada da unidade com a variedade, - da concentração com a descentralização. E remata: “Se Portugal quiser ser Portugal, é o caminho por que terá francamente de se decidir” (A. Sardinha in A Teoria da Cortes Gerais).
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