quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

O Carlismo e Portugal (II) – Perspectiva para o Futuro




Em artigo anterior mencionei as principais ligações históricas do carlismo espanhol a Portugal. Desde o seu nascimento em Abrantes - onde Don Carlos Maria Isidro apoiava no exílio a luta legitimista de seu sobrinho, o rei D. Miguel I de Portugal - até um dos momentos mais difíceis da sua história, quando Portugal foi de novo terra de exílio para Manuel Fal Conde, o líder do carlismo andaluz perseguido por Franco pela sua oposição ao Decreto de Unificación (com o qual o Caudillo impôs a fusão da Comunión Tradicionalista com a Falange e as JONS, não levava o Alzamiento um ano).


Nos momentos de glorioso êxito como nos de obscura oclusão, sempre um nexo de proximidade circunstancial e ao mesmo tempo de familiaridade fizeram de Portugal um elemento externo mas natural ao carlismo, a porta para o exílio seguro e um apoio certo e constante da parte dos legitimistas portugueses, prontos a acudir aos seus irmãos espanhóis em apuros – apoio recíproco, por certo. Mas é com S.M.C. o Rei Carlos VII que Portugal passa a ser um eixo estratégico prioritário para o carlismo, o que viria a ser confirmado pelo eminente deputado tradicionalista espanhol Juan Vásquez de Mella y Fanjul: “Dominación del estrecho, federación com Portugal, unión com Hispanoamérica.”




1 – “Federação” com Portugal


Não se engane o leitor: o termo federación - federação não é empregue com o sentido de formação de um estado federal que congregue os dois países. É tão alheia ao tradicionalismo legitimista a moderna noção de estado (sobretudo a pós-revolucionaria noção de estado federal) como lhe é intrínseco o respeito pelos direitos que assistem legitimamente às coroas. Jamais um rei carlista aventou pretensões ao trono português que poriam em causa os legítimos direitos de origem da casa de Bragança que, por sinal, tem com o ramo Borbón legitimista, fortes laços de sangue. De resto, esta visão é fundamentada e confirmada por pensadores carlistas mais recentes como Francisco Elias de Tejada e Rafael Castela Santos, este último pelo seu celebrado artigo Contra el Iberismo: Apuntes para una Epifania Ibérica.”


Assim, a federación é tomada na acepção lata de “pacto” e aponta para a Aliança Peninsular, o sonho de Sardinha e de Mella. A edificação de uma metapolítica peninsular que lidere um bloco pan-hispanista à escala mundial para combater a nova ordem anti-cristã, anti-tradicional e anti-natural emanada dos círculos culturais e políticos modernistas / consumistas, ás ordens de um poder económico global e apátrida, para quem as fronteiras, a própria existência dos países são um inconveniente empecilho. As duas nações hispanas comungam de uma biunívoca relação de interesse estratégico: o direito de salvaguarda da integridade nacional de ambas (territorial, politica, cultural e económica) e o dever de defesa de qualquer manifestação de hispanidade no mundo (e não só na América Hispana), pautada pela assunção da herança cultural hispânica, nomeadamente a língua, como veio estrutural para a inserção dos países hispânicos no contexto das nações e da fé católica como confissão oficial e exclusiva dos seus estados.


Como é bom de ver, a citada directriz estratégica de S.M.C. Carlos VII e de Vásquez de Mella ganha actualidade com o correr do calendário e, por essa via se percebe a necessidade e pertinência da Aliança Peninsular. A diluição dos poderes de independência dos estados inseridos no processo de (des)construção europeia em contexto de globalização, que a todos os níveis, presentemente vivemos, torna as ameaças à referida relação estratégica mais indistintas no meio da melée geral e, portanto, mais premente o estabelecimento da Aliança. Resta saber se ela poderá resistir à erosão dos ataques mais ou menos diplomáticos dos interesses a atingir pela sua acção, quer extra quer intra-peninsulares sem um elo mais físico de compromisso e de fidelidade… mas isso será tema para outro estudo.




2 – Diferenças entre Carlismo e Miguelismo


Como em todas as coisas na história peninsular, comparar o passado do carlismo e do miguelismo é um exaustivo elencar de similitudes e relações. Já no primeiro artigo sobre este tema me dediquei a coligir algumas, ainda que muito ficasse por mencionar, já que era pretendido que não excedesse as cinco páginas. Desde os laços de sangue e lealdade que sempre uniram ambos os ramos legitimistas ou dinastias proscritas, à coincidência de diversos eventos históricos determinantes e até pequenos e curiosos detalhes. Um me vem imediatamente à memória: dois dos nomes de maior craveira militar nas fileiras carlista da primeira guerra e miguelista da guerra civil portuguesa – ambas disputadas na década de 30 do século XIX – foram Ramón Cabrera, el Tigre del Maestrazgo e, do lodo português, Tomás Cabreira, brigadeiro, que venceu o combate de S. Bartolomeu de Messines e manteve o Algarve miguelista até à capitulação de Évora-Monte.


Mas nem tudo são coincidências: Cabrera viria a voltar costas ao carlismo, reconhecendo a linha usurpadora de sucessão ao trono, a partir do seu exílio em Londres; já Cabreira morreria na prisão de Faro, vitima das suas convicções às mãos dos carrascos liberais – embrora o seu neto e homónimo se viesse a notabilizar por eminente carbonário e republicano. Não é coincidente também a concretização política do miguelismo, como expressão do legitimismo político português, com a do carlismo em Espanha, particularmente depois do fim da contenda em Portugal.


Se o ambos os movimentos nascem de uma disputa sucessória, o carlismo desde cedo tomou apoio junto dos povos subjugados pelo centralismo que, desde Filipe V, o primeiro rei Borbón de Espanha, à revelia do tradicional exercício de poder da monarquia espanhola, revogou as antigas leis de liberdade foral dos antigos reinos, condados e senhorios de disporem de si próprios, desde algumas áreas da justiça á própria administração. Opondo-se ao absolutismo iluminista, a bandeira do carlismo representava o regresso às origens, a regeneração de uma Espanha feita de várias “Espanhas”, embora essa pluralização do conceito não seja totalmente clara ou inequívoca. Assim, a legitimidade do rei de Espanha dependia da vontade de Deus mas por meio de juramento, perante os seus reinos herdeiros da Hispânia romano-goda, dos forais (fueros) que representavam a sua dignidade de reino.


O legitimismo português tem de raiz natureza distinta. Portugal exorbita da ordem natural de legitimação de poder por herança da estrutura política da Hispânia romano-goda com a sua independência, em 1143, do reino de Leão. Nasce como país-reino, fruto da vontade de um rei e do povo, pelo menos do povo que lutou por esse rei. O eterno grito de Almacave: Nos liberi sumus, Rex noster liber est, manus nostrae nos liberverunt! Dessas mãos, depositárias do poder real do falecido rei, vai o novo rei receber a sua legitimidade por meio de Cortes que reúnem os três estados tradicionais: clero, nobreza e povo. Pela vontade de Deus e por meio da aclamação dos súbditos, cujas mãos, libertaram o rei e o reino. Uma reedição da aclamatio visigoda que exercendo a soberania não do Estado – conceito iluminista - mas dos estados, a confere formalmente ao novo Soberano, rei pela vontade de Deus.


O foralismo também não teve em Portugal a mesma dimensão histórica que Espanha uma vez que, sendo apenas aplicável ao poder local e não ao regional – dos reinos, condados e senhorios do país irmão – conviveu até bastante tarde com o feudalismo de outras regiões (ainda que em Portugal o poder régio sempre mantivesse os senhores feudais debaixo de apertado controlo). Foi todavia o foralismo que deu origem ao poder municipal que foi uma das bases estruturais do tradicional governo do reino. Pelo menos até ao governo do Marquês de Pombal (sec. XVIII).


Com Pombal chega a Portugal o despotismo iluminado de já longa carreira em França, por essa altura. O centralismo de Lisboa reforça-se como nunca, o que volta a acontecer depois das Invasões Francesas, com o governo ditatorial do Conde de Trancoso – Lord Beresford. Enquanto infante, D. Miguel não se afasta visivelmente da posição da sua mãe D. Carlota Joaquina de Borbón e dos seus próximos, marcadamente absolutista. O movimento que o apoiará a rebelar-se contra seu irmão, o Imperador do Brasil e aclamá-lo Rei de Portugal integrará indistintamente absolutistas, tradicionalistas e simples católicos, numa luta que também foi de fé, contra o liberalismo anti-clerical dos pedreiros-livres.


Ainda que durante o seu reinado S.M.F. El-Rei D. Miguel I tenha tomado decisões no sentido da restauração do municipalismo e da foralidade tradicional, não foi totalmente clara a sua posição contra o absolutismo de sua mãe e dos seus partidários, por que praticamente em todos esses anos se viveu uma calamitosa situação de guerra civil. Essa ambiguidade permaneceu no exílio do rei, a partir de 1834 e não desapareceu com o nascimento do Partido Legitimista, a “voz muda” do miguelismo no parlamento da monarquia constitucional, onde os seus deputados por várias vezes não participaram nos trabalhos por se recusarem jurar a Carta Constitucional.


Desde 1834 até ao presente que o miguelismo, como expressão do tradicionalismo (e, inegavelmente, de congregação do absolutismo) não é mais que uma lealdade dinástica difusa e heterogénea a uma linha sucessória proscrita, defendida mais nas sacristias que nos púlpitos, quase em jeito de confissão envergonhada... Não sabendo mobilizar a consciência tradicionalista, não conseguindo extirpar a sombra absolutista e mostrar ao povo os seus legítimos príncipes – banidos de Portugal até 1950 – o miguelismo eclipsou-se completamente, sem pensamento nem afirmação política, como uma curiosidade museológica. Ao contrário do que se passou com o carlismo, que passados 176 anos, mantém actual e viva – ainda que sem o vigor de outros tempos – uma alternativa política contra-revolucionária.


Obviamente, um século de república em Portugal marca uma diferença: o declínio da ideia monárquica é comum tanto à opção tradicionalista como á liberal. Mas o facto de se ter assumido a restauração da instituição monárquica como a prioridade pela qual se devem sacrificar convicções e visões distintas para Portugal, e o fusionismo dinástico pretendido para o Senhor Dom Duarte Pio, o Duque de Bragança, remeteu o miguelismo ao significado de apoiar, com três ou quatro gatos, a pretensão ao trono de um príncipe miguelista que nem miguelista é… e mais nada.




3 - Integralismo Lusitano e Neo-Integralismo


O movimento Integralismo Lusitano nasce logo a seguir à implantação da república (1913) e como reacção aos conturbados primeiros anos do novo regime; inspirado por outras correntes neo-monarquistas europeias, a maior das quais a Action Française, seduziu desde monárquicos mais ou menos desalinhados com a monarquia deposta a republicanos desiludidos com a república imposta. A partir de um movimento cultural de resposta ao anti-clericalismo republicano, os Integralistas sintetizaram logo em 1914 e por intermédio de Alberto de Monsaraz, as linhas fundamentais do movimento: “monarquia tradicional, orgânica, anti-parlamentar”.


O regresso à integralidade católica e à essência tradicional da monarquia portuguesa, extirpada da contaminação absolutista e iluminista, pareciam a regeneração perfeita do miguelismo como expressão do tradicionalismo político luso… não fora o Integralismo Lusitano, naqueles primeiros anos, não defender o ramo dinástico miguelista. Declarada fidelidade ao rei deposto, o liberal D. Manuel II, durante 4 preciosos anos os integralistas apoiaram o esforço bélico da nação, envolvida pela república (com assentimento do rei exilado na Grã-Bretanha) na I Guerra Mundial pelo lado aliado, reduzindo ao silêncio a sua actividade política.


É com a traição de D. Manuel II aos insurgentes monárquicos de Monsanto e da “Monarquia do Norte” em 1919 (o célebre Go on! transmitido a Ayres de Ornellas), que os Integralistas se voltam para o miguelismo dinástico, na pessoa do filho do S.M.F El-Rei D. Miguel, chamado de D. Miguel II. Oficial do exército austríaco, D. Miguel havia renunciado à sua comissão de serviço com a entrada de Portugal na guerra, pelo campo oposto. Em 1921 renunciaria também aos seus (legítimos) direitos à coroa portuguesa, na pessoa do filho mais novo, D. Duarte Nuno que, pelo (agora contestado) Pacto de Dover, reconheceria a realeza de D. Manuel II em troca do seu reconhecimento como herdeiro deste, em caso falta de descendência directa – como veio a acontecer, de resto.


A adesão do Integralismo ao legitimismo dinástico e a solução fusionista, que tão nefastos resultados vem trazendo à presente concretização do ideário monárquico, foram seguidas do tresmalhar ideológico dos integralistas, a partir da morte precoce do “pastor” António Sardinha e de o movimento não se unir numa só posição em relação ao regime ditatorial subsequente ao golpe de estado de 1926. Seduzidos pelo nacional-sindicalismo então em voga na Europa – e injectado no seio integralista por Alberto de Monsaraz e Rolão Preto - pela possibilidade de lutar por um mal menor (com sucesso mais provável que lutar pelo bem maior), muitos abdicaram de lutar pela conquista da sua monarquia, absorvidos uns pelo regime salazarista (Marcello Caetano, por exemplo) outros perseguidos por este, outros retirados da política, por desilusão…


Do tresmalho ao desnorte foi uma questão de tempo, de muito tempo de salazarismo. Da fórmula da monarquia tradicional, orgânica e anti-parlamentar de Monsaraz, com um rei que para Gama e Castro deveria governar mas não administrar, os integralistas passaram a simplesmente velar leves argumentos em abono da forma monárquica de chefia de estado, uma em que o rei não governa nem administra, limitando-se a “chefiar tudo o que não seja discutível no plano nacional – a Diplomacia, as Forças Armadas, a Justiça”, citando Mário Saraiva. O chamado Neo-Integralismo apenas culminou a degradação ideológica do movimento integralista, desde o início pejado de filiações alheias e estranhas à sua natureza patriótica; sempre heterogéneo, desordenado e inconstante, o Integralismo Lusitano acabou ingloriamente diluído no mesmo liberalismo de fachada monárquica que visou drenar.





4 - O Carlismo e o futuro do Tradicionalismo Português


Revisitado o percurso do legitimismo português, foi possível perspectivar aquilo que o distingue do espanhol e que foi, em boa medida, determinante da falência do miguelismo enquanto movimento contra-revolucionário e expressão do tradicionalismo político luso. É por isso que se pode olhar o último século e meio de carlismo como a vida que o miguelismo não pôde viver por razão de maleita congénita sem esperança de cura.


Minado durante largas décadas pelo tumor absolutista, o miguelismo não conseguiu enfrentar os desafios dos tempos, assumir a sua (co)essência tradicionalista e conseguir o afecto e adesão dos portugueses; desenganado pelo malogro do Integralismo Lusitano e sangrado pelo salazarismo, perdeu-se na memória das gentes como uma longínqua lealdade dinástica sem concretização política, ignorada e desprezada por um país cómodo com a “sua” república. Lealdade que, de resto, nem sequer foi sequer acolhida ou reciprocada pelo príncipe de sangue miguelista, o actual Duque de Bragança, Senhor Dom Duarte Pio…


O caso é o seguinte: sendo que o miguelismo faliu, desde há décadas que não há tradicionalismo em Portugal, embora continuem a existir tradicionalistas. Órfãos de rei legítimo, de congregação, de concretização politica. Ora os carlistas espanhóis também estão órfãos de rei legítimo, mas se não estão congregados (hoje são poucos e estão divididos) estão mobilizados por estruturas sociais e políticas; e, sobretudo, possuem um século e meio de concretização de uma visão tradicionalista para Espanha que obedece a princípios comuns ao tradicionalismo português, embora isso não fosse totalmente visível no miguelismo histórico.


Assim, urge refundar uma alternativa tradicionalista para Portugal: necessariamente miguelista do ponto de vista da lealdade dinástica (embora a necessária legitimidade exercício exclua a pretensão de Dom Duarte Pio de Bragança) mas politicamente carlista – ajustando obviamente todo o disposto foral para o âmbito municipal tradicional em Portugal. Uma Comunhão Tradicionalista Portuguesa que, com o apoio dos irmãos carlistas, seja uma peça válida na construção de uma meta-política comum à Península que partilhamos e ao mundo hispano (o lusófono incluído), para que este se constitua como um bloco de decisão mundial compatível com os quase mil milhões de pessoas que representa, em prol dos seus princípios morais, culturais e políticos tradicionais. Voltando ao princípio deste artigo:


“Federemo-nos” os tradicionalistas, que melhor poderemos perseguir os nossos objectivos, lutando por Deus, Pátria, Rei e o Bem Comum da Cristandade.