"Quem é hoje cristão e godo nesta nossa terra de Espanha?
Uma geração degenerada pisa os restos dos heróis: homens sem crença, blasfemos ou hipócritas sucederam aos que criam na grandeza moral do género humano e na Providência de Deus.
Dantes, os príncipes do povo eram os capitães das hostes: a espada dos reis a primeira que se tingia de sangue dos inimigos da pátria.
Dantes, o sacerdote era o anjo da terra: os que passavam paravam para beijar a fímbria da sua estringe; porque a paz e a esperança entravam em todas as moradas sobre que desciam as bençãos dele.
Dantes o juiz era o pai do oprimido, o tribunal o abrigo do inocente, a justiça o nervo do Império Gótico.
Dantes, nos conselhos dos prelados, dos nobres, dos homens livres, as leis iam buscar a sanção da sabedoria e aferir-se pela utilidade comum. Lá o rei sabia que o poder lhe vinha de Deus e da vontade dos Godos, que o ceptro era cajado de pastor e não cutelo de algoz e a coroa uma carga pesada, não uma auréola de vanglória.
Hoje, nos Paços de Toletum só retumba o ruído das festas, os francos e os vascónios talam as províncias do norte, e a espada dos guerreiros só retala nas lutas civis.
Hoje os príncipes na embriaguez dos banquetes esqueceram-se das tradições dos avós; esqueceram-se que era aos capitães das hostes da Germânia que se dava o nome de reis.
Hoje a prostituição entrou no templo do Crucificado: os claustros das catedrais velam com o seu manto de pedra as abominações da torpeza, e as mãos do sacerdote deixam muitas vezes humedecida a tela que veste os altares com vestígios do sangue derramado covarde e vilmente.
Hoje a cobiça assentou-se no lugar da equidade: o juiz vende a consciência no mercado dos poderosos, como as mulheres da Babilónia vendiam a pudicícia nas praças públicas aos que passavam, diante da luz do dia.
Hoje, a espada substituiu o concelho dos prelados, dos nobre e dos homens livres: a coroa é uma conquista, a lei vontade do desonrado vencedor de pelejas domésticas, a liberdade palavra mentida.
Império de Espanha, Império de Espanha! Porque foram os teus dias contados?"
Alexandre Herculano in Eurico o Presbítero