quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

O Carlismo e Portugal

“Cuán sensible ha sido a mi corazón la muerte de mi caro hermano! Gran satisfacción me cabía en medio de las aflictivas tribulaciones, mientras tenía el consuelo de saber que existía, porque su conservación me era la más apreciable: Pidamos todos a Dios le dé su santa gloria, si aún no ha disfrutado de aquella eterna mansión. No ambiciono el trono; estoy lejos de codiciar bienes caducos; pero la religión, la observancia y cumplimiento de la ley fundamental de sucesión y la singular obligación de defender los derechos imprescriptibles de mis hijos y todos mis amados sanguíneos, me esfuerzan a sostener y defender la corona de España del violento despojo que de ella me ha causado una sanción tan ilegal como destructora de la ley que legítimamente y sin alteración debe ser perpetuada.(…)”
Estas palavras podiam ter sido proferidas num qualquer canto de Espanha, debaixo do lustre de um salão madrileno ou das sombras de um bosque das Vascongadas… mas não foram. Estas são as primeiras palavras do manifesto de Don Carlos María Isidro de Borbón ao povo espanhol, dando início ao movimento carlista no primeiro dia de Outubro de 1833… O Manifesto de… Abrantes! Sim, a portuguesíssima Abrantes!
Neste episódio, como em quase todos, mais uma vez se espelham e entrecruzam as histórias de Espanha e Portugal; com ele se inicia uma estreita ligação que estende os laços familiares de D. Carlos de Borbón aos movimentos contra-revolucionários de um e de outro lado da fronteira. O carlismo e o miguelismo.
Sangue e Lealdade: O Elo Bragança
Nesse dia primeiro de Outubro de 1833 D. Carlos achava-se em Portugal, onde permanecia desde 16 de Março. Tinha sido expulso de seu país em razão de não ter aceite a Pragmática Sanção que o seu irmão, o Rei D. Fernando VII fora, já moribundo, convencido por sua mulher e cunhada a confirmar sem prévia consulta das Cortes. Contornando desta forma inválida a até então vigente lei semi-sálica de sucessão ao trono espanhol para favorecer a filha de D. Fernando VII, que viria a ser D. Isabel II, a Pragmática Sanção vinha ferir a sucessão desta e a da sua descendência, de insanável ilegitimidade. Citando a Wikipedia, a Enciclopédia Livre:
“Em 10 de Outubro de 1830 Maria Cristina de Bourbon, quarta esposa de Fernando VII, deu à luz uma filha, que foi baptizada com o nome de Isabel, substituindo, ao abrigo da Pragmática Sanção recém-publicada, o seu tio na posição imediata da linha de sucessão. Os apóstolicos continuaram a apoiar os direitos de D. Carlos ao trono, considerando a Pragmática Sanção ilegal e defendendo a sua legitimidade na sucessão. Ainda que em 1830 D. Carlos tenha aceite a Pragmática Sanção, retractou-se em 1833, recebendo em Março desse ano ordem para abandonar Espanha e fixar a sua residência nos Estados Pontifícios. O porto de embarque foi fixado para a cidade de Cádis, mas devido a uma epidemia de cólera que então assolava aquela cidade, foi-lhe permitido embarcar no porto de Lisboa. Já em território de Portugal, apoiado nas suas ligações familiares com a dinastia reinante de D. Miguel, atrasou sucessivamente a sua partida e negou-se a regressar a Madrid para jurar fidelidade a Isabel como sucessora. Também não aceitou fazê-lo perante o embaixador Luis Fernández de Córdova, ali enviado em Abril de 1833. Face à recusa, Fernando VII ordenou o confisco dos seus bens e enviou-lhe uma fragata com a ordem de o conduzir a Roma. O capitão tinha instruções para lhe entregar 400 000 reais quando o navio tivesse zarpado de Lisboa. D. Carlos não só se recusou a embarcar, mas também comunicou aos principais governos europeus a sua decisão de não renunciar ao trono de Espanha. Tinha por principal apoiante e mentor Joaquín Abarca, o bispo de León, então desterrado em Portugal. Enquanto esteve em Portugal, apoiou a regência de D. Miguel de Bragança, lutando contra a alteração nas leis de sucessão que permitiriam a D. Maria da Glória reinar. Apoiado na lei sálica, introduzida na Espanha por Filipe V, mas abolida pela Pragmática de 1830, reivindicou também sempre o direito de suceder no trono do irmão, nunca aceitando a realeza de sua sobrinha Isabel.(…) A guerra civil em Portugal impediu Carlos de deixar o país, e nada pode fazer em benefício dos espanhóis rebelados em seu nome, que o tinham proclamado rei como Carlos V. Estourou a guerra civil, em conflitos que perduraram no século XIX e ficaram conhecidos como Guerras Carlistas.
D. Carlos de Borbón e D. Miguel de Bragança: dois príncipes legitimistas, dois esteios da contra-revolução europeia, duas almas gémeas nas palavras de Oliveira Martins. Tio e sobrinho, apenas 14 anos os separavam na idade e quase mais nada no demais. Partilhavam a mesma visão do mundo, da vida e da missão de um monarca de um reino hispano. Partilharam também os mesmos desafios, a inevitabilidade da guerra civil e dos sofrimentos do exílio…sem que um dia sequer abdicassem, um e outro, das suas convicções.
Na verdade um e outro vêm personificar e liderar a reacção anti-revolucionária que emerge das invasões francesas e das guerras napoleónicas na Península: contra o tirano corso e a inversão da ordem tradicional, legítima e natural do liberalismo, fervilham em Espanha o partido Realista que acabaria por lutar nas guerras realistas de 1820-1823 e pela mesma altura, em Portugal, um significativo apoio que D. Miguel, ainda Infante, reúne em algumas escaramuças como a Vilafrancada e a Abrilada.
Começou, como vimos, por ser D. Carlos a apoiar D. Miguel, nesse ano de 1833. Derrotado D. Miguel no ano seguinte, seria a vez de D. Miguel e os Bragança legitimistas, bem como os seus leais, a lutar por D. Carlos e o carlismo, não sem que ainda como rei de Portugal, D. Miguel fosse o primeiro monarca europeu a reconhecer o seu tio como legítimo rei de Espanha e facilitar em tudo o possível, a circulação das tropas carlistas pelo território português controlado pelas forças miguelistas. Recíproco obséquio seria concedido pelos carlistas no território fronteiriço por si controlado ou simpatizante da sua causa, abrigando e apoiando as guerrilhas miguelistas dos Silveiras – como bem salienta Oliveira Martins no tomo I da sua Historia de Portugal Contemporâneo.
Numerosas tropas se passaram do exército miguelista derrotado para o de D. Carlos, numa continuação natural da sua luta, onde esta ainda podia ser travada. A intervenção no conflito do país irmão tanto mais se justificava quanto num caso como no outro a facção liberal ter feito o mesmo e incorporado nutrido auxílio externo, nomeadamente da Grã-Bretanha primeiro e depois da França, entre outros países.
Podemos citar Bulhão Pato, nas suas Memórias, como testemunho disso mesmo: “(…)Quando os carlistas entraram na cidade, e se aboletaram nas residências particulares, um grupo surgiu em casa (dos pais de Bulhão Pato). Surpresa! O oficial que os comandava era um português de apelido Paz, e que morreu dias depois. Era um dos muitos miguelistas que, depois da derrota sofrida em 1834, foram para Espanha combater pela causa de D. Carlos.(…).
Entre essas tropas encontrava-se D. Sebastião de Borbón y Bragança, sobrinho de D. Miguel e que seria enteado de D. Carlos. D. Sebastião participou do segundo cerco de Bilbau e tornou-se comandante do exército carlista do Norte em 30 de Dezembro de 1836. Em 1837 ganhou a Batalha de Oriamendi contra a Legião Auxiliar Britânica. Liderou depois a fracassada Expedição Real contra Madrid, sendo despedido de seu posto ao retornar ao norte espanhol, no final de 1837.
A mãe de D. Sebastião, D. Maria Teresa de Bragança, Princesa da Beira e legitimista de sempre, casa em segundas núpcias com D. Carlos de Borbón, seu tio (e viúvo de sua irmã Maria Francisca de Bragança). Depois de apoiar a causa miguelista, empenhou de seguida todos os seus esforços na vitória carlista, o que lhe custou ser excluída, com o seu filho, da linha de sucessão à coroa espanhola pelo ramo isabelista.
De facto, a Princesa da Beira virá a ser uma personagem basilar na estruturação e formalização política do carlismo, por meio da sua “Carta a los Españoles” escrita com a colaboração do bispo primaz dos exércitos carlistas, D. Josep Caixal i Estradé. Reafirmada e concretizada a razão de ser da confessionalidade do Estado, acrescenta à premissa de legitimidade de origem do rei a de exercício, sujeitando-o à lei e à foralidade tradicionais. Nas próprias palavras da Carta:
“(…)La soberanía nacional, digan lo que quieran ciertos liberales llamados conservadores, es uno de los principios fundamentales de todo el sistema constitucional moderado, y en sentido del liberalismo, de esa soberanía nacional emanan todos los poderes, todos los derechos, todas las leyes. Con esto se sustituye en todo la voluntad puramente humana a la voluntad divina y se niega todo poder, toda ley, todo derecho de origen divino. Ahora bien; esto no es solamente contrario a la razón, sino también anti-católico.(…)”
ainda:
“(…)La fiel observancia de las veneradas costumbres, fueros, usos y privilegios de los diferentes pueblos de la monarquía fueron siempre objeto de altos compromisos reales y nacionales ... Porque el monarca en España no tiene derecho a mandar sino según religión, ley y fuero.(…)”
Muito há a dizer sobre o contributo inestimável de Maria Teresa de Bragança, Princesa da Beira, mas que foge ao tema deste artigo e terá que ficar para um outro, destinado a este propósito.
Voltaria ainda o sangue carlista dos Bourbons a unir-se a ao miguelista dos Bragança: D. Maria das Neves Bragança, filha d’ El-Rei D. Miguel e nascida no exílio na Alemanha, casar-se-ia com D. Alfonso Carlos de Bourbon em 1871 e, um ano depois, entraria com o marido em Espanha para o acompanhar no eventos da III Guerra Carlista. Também com ele iria viver o exílio em Graz, na Áustria…o sangue e a lealdade Bragança (miguelista) nunca faltaram nesse século XIX à causa carlista, quando esta mais precisou.
Portugal, afinal tão perto...
A partir de 1931, D. Maria das Neves Bragança e seu marido D. Alfonso Carlos de Bourbon, num esforço de reunião de todas as facções carlistas na Comunión Tradicionalista, empenharam-se activamente na direcção do Partido Tradicional Catolico e nele apoiando-se para esse efeito, partido que nascera em 1918 pela mão de D. Juan Vásquez de Mella.
Fervoroso carlista, Vásquez de Mella havia se afastado da estrutura oficial do movimento por força de divergências com D. Jaime de Borbón. Desde finais do século XIX que Vázquez de Mella, em acesos y eloquentíssimos discursos nas cortes espanholas, onde era deputado, e por meio de todo o tipo de produção escrita, trouxera ao carlismo uma dimensão de afirmação pan-hispanista de orgulho patriótico que fazia muita falta à Espanha daqueles tempos… como faz agora, de resto. Mas, adiante; com um tal patriotismo Vasquez de Mella não poderia ficar indiferente ao país vizinho, Portugal, pelo qual desde sempre dedicou sincera afeição. Estabeleceu, entretanto, importantes contactos junto de organizações políticas congéneres deste lado fronteira, com especial relevância para o Integralismo Português de António Sardinha. Com este, uma forte amizade nasceria como que uma semente para a colheita de aproximação peninsular que um e outro aspiravam obter, embora de formas diferentes.
É Mella que confirma politicamente no carlismo as três grandes linhas de posicionamento estratégico internacional de D. Carlos VII (orientação que também daria ao seu Partido Tradicional Catolico):
“Dominación del Estrecho, federación con Portugal, y unión con los Estados Hispanoamericanos.”

É pois com D. Juan Vásquez de Mella que o carlismo passa a olhar Portugal como perspectiva integrante do olhar hispano sobre o mundo.

O ano de 1936 traz consigo drásticos desenvolvimentos: após o assassinato de José Calvo Sotelo estala a Guerra Civil Espanhola, com o Alzamiento Nacional do General Franco a reunir a oposição à República masónico-socialista que por essa altura contava já cinco anos de violência contra pessoas, propriedade e religião e ainda incontáveis arbitrariedades. Nesse ano morre também D. Alfonso Carlos de Borbón sem descendência, nomeando o sobrinho de sua mulher, D. Javier de Borbón-Parma, filho de D. Antónia de Bragança, como sucessor (regente) da linha real carlista. É já D. Javier que ordena às milícias carlistas, os Requetés, que apoiem o Alzamiento Nacional (durante muito tempo havia sido considerada uma sublevação carlista autónoma).
Portugal teve uma intervenção na Guerra Civil espanhola tão significativa quanto oculta: embora 20.000 “Viriatos” tivessem integrado as forças dos nacionales nunca essa participação foi assumida directamente pelo Estado Português sob as ordens do Prof. Doutor Oliveira Salazar. Além de camaradas de armas, Portugal fornecia também aos nacionalistas abastecimentos, passagem e abrigo em território português, para muitos Requetés entre estes, benesses escondidas o mais possível para não desafiar demasiado a fúria dos rojos, que Salazar desejava bem longe das fronteiras portuguesas.
Um desses Requetés não viria para Portugal acossado pelos republicanos mas sim pelos próprios franquistas: Manuel Fal Conde. O dinâmico chefe do carlismo andaluz, depois de levar a representação eleitoral carlista da sua região (até aí pouco dada ao carlismo) a níveis que nem em Navarra nem nas Vascongadas se obtinham por essa altura, participou na organização e mobilização dos Requetés. Entrou em rota de colisão com Franco quando pretendeu criar uma Real Academia Militar Carlista que formasse ideológica e militarmente os líderes Requetés e proporcionasse ao movimento autonomia e capacidade de acção. A reacção de Franco não se fez esperar e Fal Conde viu-se forçado a recolher-se em Portugal, que o recebeu bem.
Daqui continuou a exercer as suas funções à distância, nomeadamente emitindo a sua determinada oposição ao Decreto de Unificación com o qual Franco fundia, baixo seu mando, a Falange, a Comunión Tradicionalista (movimento carlista) e as JONS. Em Portugal havia, como vimos, nascido o carlismo, em Portugal estava Fal Conde determinado em não o deixar morrer. Voltaria Fal Conde a Espanha onde, depois de um período de prisão, abdicaria por fim de todo o envolvimento político activo.
Depois desses anos o contacto entre o carlismo e Portugal reduziu-se significativamente: à medida que Salazar afastava Portugal da instituição monárquica, perdiam também fôlego os movimentos monárquicos portugueses, particularmente os legitimistas. D. Duarte Nuno, o herdeiro Bragança miguelista depois de obter a anulação condescendente da Lei do Banimento (1950) remeteu-se à mais discreta existência, regressado a Portugal com a família, controlado de perto pelo aparelho do Estado e pela Polícia Política. Depois do fim da ditadura salazarista, o filho herdeiro, D. Duarte Pio (que também é o cartista por meio do casamento fusionista que contraiu seu pai com D. Maria Francisca de Orleães e Bragança) pugnou muitos anos pelo mesmo comportamento apagado do pai e, nestes últimos, por muita hesitação e até equívoco, actuando lamentavelmente como um humilde funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros da República Portuguesa, ainda assim pouco dotado para o cargo. E definitivamente não dignificando o legado legitimista de seu bisavô.
É sobretudo pela anemia do tradicionalismo português, monárquico e miguelista, que desde 1950 para cá o contacto e a relação do carlismo com Portugal tem tido franco decréscimo: não que o próprio carlismo tenha vivido um mar de rosas durante esse tempo, como se sabe. Perturbado por discórdias intestinas desde a morte de D. Javier (1977) e da deriva esquerdista de seu herdeiro D. Carlos Hugo, nunca deixou de se auto-renovar, de ter sangue novo nas suas fileiras, de prosseguir na sua concretização ideológica e política. E de oferecer, permanentemente, uma alternativa que transcende a questão dinástica e que, portanto, que ultrapassa o Príncipe que defende.
O Futuro
É essa dimensão sustentada do carlismo que quase sempre faltou ao miguelismo: lutar por mais que uma lealdade difusa a Deus, Pátria e Rei, sem concretização nem actualização política, sem uma perspectiva estratégica, sem uma linha de rumo e um plano de acção. Digo quase por que o Integralismo Português me impede de dizer nunca, muito embora tivesse sido uma excepção por pouco tempo, demasiado presa ao nacional-sindicalismo e nem sempre inequivocamente miguelista na lealdade dinástica. Uma excepção que confirma a regra. Completamente dependente da figura do príncipe miguelista, o miguelismo tem sofrido imenso com a fraqueza que estes têm tido nas últimas décadas. Não passa hoje de uma sombra saudosista de lealdades impossíveis.
O miguelismo, hoje, vive apenas no coração de uns poucos miguelistas. Nem mesmo na sua razão subsiste.
O carlismo nasceu em Portugal; pelo sangue português foi defendido; por sangue português foi liderado. Nascido português e baptizado de sangue português, é tão português como é espanhol. Tem o direito e o dever de participar na revitalização do tradicionalismo em Portugal. É sua missão histórica!
Num próximo artigo passaremos a discutir as vias possíveis.
PS: Agradeço ao Fray Trabucaire (O Irmão de Lá) o seu precioso contributo para elaboração deste texto. Gracias, Pá!

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