COMENTÁRIO PRÉVIO
André F. Falleiro Garcia
Rafael Gambra Ciudad (1920-2004), filósofo, historiador e escritor, foi o maior vulto do conservadorismo espanhol na segunda metade do século XX.
Dedicou-se inteiramente à defesa do tradicionalismo católico monárquico, alinhado com o movimento carlista. Empenhou-se em buscar a consecratio mundi – a sacralização da vida temporal – que Pio XII assinalou como o ideal da ação pública dos católicos.
Considerou que a perda ou enfraquecimento da unidade religiosa abalaria a própria unidade nacional, com a reaparecimento dos separatismos regionais e a guerra civil, favorecendo a intervenção estrangeira dominadora.
Firmou-se o carlismo na sustentaçao do seguinte ideário político-ideológico: o reinado social de Nosso Senhor Jesus Cristo; a religião católica como religião oficial do Estado espanhol; a unidade católica como base da unidade nacional, constituindo seu melhor patrimônio espiritual; o dever do Estado de proteger e ajudar a Igreja, dentro de sua respectiva competência; não modificar a situação legal das confissões não-católicas na Espanha e manter a tolerância religiosa nos limites convenientes ao bem público.
O texto clássico de Rafael Gambra, apresentado a seguir, representa a atitude defensiva do tradicionalismo espanhol diante do conteúdo demolidor contido na Declaração Conciliar Dignitatis Humanae do Concílio Vaticano II.
RAFAEL GAMBRA C.
O carlismo sempre defendeu a unidade religiosa da Espanha. Mais ainda: essa unidade é a pedra angular da ordem política que o carlismo propugna. Quando faz de Deus o primeiro de seus lemas, não significa simplesmente que crê na existência de Deus no Céu, ou que propõe a religiosidade como norma de vida de seus adeptos. A trilogia carlista não é um programa de vida pessoal, senão um ideário de um sistema político. A unidade católica, além do mais, ainda que às vezes de forma incongruente com o regime político, tem estado vigente na Espanha desde os tempos de Recaredo, no século VI, até a atual Constituição de 1978, com a única exceção dos cinco anos da Segunda República.
O que é a unidade religiosa? Para melhor compreendermos, digamos, antes de tudo, o que não é a unidade religiosa. Não é, ao contrário do que muitos pensam, coação nem intolerância. A fé não pode ser imposta a ninguém – nem moral, nem sequer fisicamente – posto que é uma virtude infusa que Deus concede e que incide no mais íntimo de cada alma. Tampouco se deve exercer alguma coação sobre o culto privado de outras religiões, nem sobre sua prática em locais ou templos reservados, contanto que não se exteriorize nem se propague publicamente, já que num Estado confessional a difusão das falsas religiões deve ser considerada como mais daninha do que a propagação de drogas ou substâncias nocivas.
Mais ainda: o sistema tradicional aconselha que se adote a política prudencial, pela qual o governante católico – em cuja nação estão arraigadas de fato mais de uma confissão religiosa – deve basear-se no que tenham de comum essas religiões e praticar a tolerância de cultos. Não é o caso da Espanha, onde não existe outra religião – nem histórica nem ambientalmente estabelecida – além da católica.
Que significa então a unidade religiosa que o carlismo propugna como primeiro de seus lemas? Simplesmente, que a legislação de um país deve estar inspirada pela fé que ali se professa – a católica no nosso caso – e que não pode contradizê-la; que em relação aos costumes, enquanto podem ser influenciados pelas leis e pela política do governante, deve-se fazer o possível para que permaneçam católicos. Que a religião, enfim, deve ser objeto de proteção por parte da autoridade civil. Dito de outro modo: que não se pode impor nem propor leis que contradigam a moral católica – antes de tudo o Decálogo – nem que atentem contra os direitos e atividades da Igreja. Este fundamento religioso (religião é religação com uma ordem sobrenatural) é radicalmente oposto ao princípio constitucional moderno, segundo o qual o poder procede do homem, de sua vontade majoritária, e nada tem que ver com Deus, nem com o Decálogo o qual só interessa à vida privada de quem professa essa religião. Recordemos que na origem de nossas guerras civis – que sempre tiveram um fundo religioso – os dois brados que se opunham entre si eram: “Viva a Religião!” e “Viva a Constituição!”
O Estado confessional e a conservação da unidade religiosa lá onde existam são, antes de tudo, uma conseqüência do primeiro Mandamento, que nos prescreve amar a Deus sobre todas as coisas, e não só em nosso coração ou privadamente, senão também nas coletividades formadas, familiares ou políticas. Em segundo plano, são necessários, para que se conserve o imenso bem de uma religiosidade ambiental ou popular, do que depende em grande medida a salvação das almas. Em alguns momentos ápices da história o Cristianismo se propagou de modo súbito, quase milagroso: no Império Romano durante o tempo dos Apóstolos, na rápida cristianização dos povos bárbaros quando caiu Roma, na difusão fulgurante de nossa fé na América espanhola. Mas nos demais momentos a fé requer ser mantida com esforço, para superar os perigos, do mesmo modo como fazemos com nossa fé pessoal, e com a saúde e o dinheiro, e qualquer gênero de bens, que requerem ser guardados e preservados. Sob um Estado laico a fé acaba sendo perdida, porque esse povo não merece a fé que recebeu, e isso é patente em nossa sociedade.
Em segundo lugar, tampouco pode subsistir um governo estável que não esteja assentado no que Wilhelmsen denominou “ortodoxia pública”. Quer dizer, um ponto de referência que serve de fundamento à autoridade e obrigatoriedade das instituições, leis e sentenças. A rigor, se for estabelecida a liberdade religiosa (e o conseqüente laicismo do Estado) resulta impossível mandar ou proibir alguma coisa. Em nome do quê se preservará em tal sociedade o matrimônio monogâmico? A que título se proibirá o aborto, a eutanásia e o suicídio? O que poderá se opor ao nudismo, à objeção de consciência, às drogas ou à promiscuidade comunitária?
Bastará que o atingido por uma autorização ou proibição recorra a uma religião qualquer – inclusive individual – que autorize tal prática ou a proíba. E que limite poderá colocar o Estado para essa liberdade religiosa, se considerar que ela está fundada no “direito da pessoa”? Quem deseje divorciar-se ou viver em poligamia, só precisará declarar-se adepto das inúmeras religiões orientais, ou do Islã ou dos mórmons. Quem queira praticar a eutanásia ou induzir ao suicídio, poderá declarar-se xintoísta. O que deseja praticar o nudismo em público, alegará sua inscrição na religião dos bantus. Os opositores ao serviço militar buscarão seu apoio nas Testemunhas de Jeová. Enfim, os que vivem na promiscuidade ou se drogam, encontrarão justificativa nos antigos cultos dionisíacos ou báquicos. A inviabilidade, em última análise, de qualquer governo humano, se torna assim patente. A “liberdade religiosa” é, por sua própria essência, a morte de toda autoridade e governo.
Poder-se-á objetar, não obstante, que a Declaração Conciliar Dignitatis Humanae do Concílio Vaticano II propugnou a liberdade religiosa e o conseqüente laicismo de Estado.
O que os carlistas devemos pensar a esse respeito? A meu juízo, o seguinte:
1.º.- O Concílio Vaticano II não é um concílio dogmático mas apenas pastoral, por sua própria declaração: por isso mesmo, isento de infalibilidade.
2.º.- A liberdade religiosa no foro externo ao indivíduo contradiz o ensinamento de todos os papas anteriores (um deles santo) desde a época da Revolução Francesa, e particularmente a encíclica Quanta Cura de Pio IX, que reveste as condições de infalibilidade.
3.º.- A Declaração Conciliar se contradiz a si mesma, posto que ao mesmo tempo afirma que deixa intacta a doutrina anterior.
4.º.- Os amargos frutos dessa Declaração são bem patentes na Igreja e na sociedade.
5.º.- Se essa Declaração tivesse que ser recebida como “palavra de Deus”, ao carlismo não restaria outra coisa senão dissolver-se, porque tem sido o último e mais heróico esforço em defesa do regime da Cristandade.
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* Publicado em: HOJA INFORMATIVA de la Comunión Católico-Monárquica-Legitimista - Madrid, septiembre 1985.
Tradução: André F. Falleiro Garcia
Excelente texto do mestre Don Rafael.
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